A desembargadora federal Luciana
Pinheiro Costa, relatora do voto majoritário proferiu julgamento sob a
perspectiva de gênero, considerando o trabalho doméstico da mulher como
integrado ao conceito de economia familiar, caracterizando uma mãe lavradora
como segurada especial e permitindo o reconhecimento do direito à aposentadoria
por idade rural.
Confira a apresentação do cenário
judicial, jurisprudencial e científico em torno do conceito de julgamento com
perspectiva de gênero, bem como a sua repercussão no direito previdenciário.
Julgamento com perspectiva de
gênero
Segundo o Superior Tribunal de
Justiça (STJ), o protocolo serve como guia para que o Judiciário enfrente
práticas discriminatórias, aprimorando a resposta institucional às agressões
contra mulheres. A meta é evitar que a violência sofrida — seja física, simbólica,
pública ou privada — seja seguida por uma segunda violência, agora
institucional, por parte do Estado.
O próprio protocolo destaca que o
foco do Judiciário deve ser a remoção dos obstáculos que impedem o
reconhecimento da igual dignidade entre mulheres e homens, condição essencial
para garantir o pleno acesso à justiça.
Julgamento com perspectiva de
gênero no direito previdenciário
O Protocolo para
Julgamento com Perspectiva de Gênero, elaborado pelo CNJ, reconhece
expressamente o trabalho pioneiro das magistradas da Justiça Federal no tema.
Antes mesmo da publicação do protocolo, a Comissão AJUFE Mulheres,
coordenada pelas juízas federais Tani Maria Wunster e Clara da Mota Santos
Pimenta Alves, lançou, em 2020, o guia “Julgamento com perspectiva de gênero:
um guia para o direito previdenciário”, com apoio de juristas e acadêmicas.
Dada sua relevância, o CNJ
incorporou o conteúdo do guia em seis páginas do protocolo, reconhecendo sua
qualidade técnica e o valor de suas contribuições.
Na decisão analisada, nota-se a
aplicação prática desses fundamentos: evidencia-se que um tratamento
formalmente neutro entre homens e mulheres pode gerar desigualdades reais,
especialmente quando desconsidera as dificuldades femininas no acesso ao mercado
formal e a desvalorização do trabalho doméstico.
O acórdão também reforça que
juízes e juízas devem rejeitar interpretações que tratem as atividades
domésticas como improdutivas, evitando preconceitos que perpetuem desigualdades
de gênero no sistema previdenciário.
O que decidiu o TRF6
A desembargadora federal Luciana
Pinheiro Costa destaca que o voto vencido – contrário ao entendimento da
relatora, que prevaleceu no julgamento – reconhecia apenas a necessidade de
análise do mérito do caso. No entanto, negava o direito da segurada à
aposentadoria por idade rural, também chamada de aposentadoria por velhice
rural.
A desembargadora explica que sua
divergência em relação ao voto vencido se deu por dois motivos: primeiro,
quanto à data de aquisição do direito, considerando a possibilidade de analisar
os requisitos da aposentadoria por idade rural com base nos princípios da
fungibilidade dos benefícios previdenciários; segundo, por adotar um julgamento
com perspectiva de gênero.
Ela ressalta que, na época dos
fatos, a legislação exigia que apenas o trabalhador rural considerado chefe ou
arrimo de família tivesse direito à aposentadoria (art. 4º, parágrafo único, da
Lei Complementar nº 11/1971 e art. 297 do Decreto nº 83.080/1979). No entanto,
a jurisprudência atual entende que essa exigência fere o princípio
constitucional da isonomia, mesmo em relação a períodos anteriores à
Constituição de 1988 — como é o caso analisado.
Ao tratar da comprovação do tempo
de trabalho rural, a magistrada destacou a possibilidade de estender a prova
material à segurada, mesmo que os documentos estejam em nome de outro membro da
família, como o cônjuge. Esse recurso é especialmente relevante na previdência
rural, sobretudo para as mulheres, cujo trabalho no campo, historicamente, foi subestimado
e vinculado à dependência do homem, conforme o modelo instituído pela Lei
Complementar nº 11/1971.
A desembargadora lembra que, em
documentos oficiais, era comum a mulher ser identificada como “do lar”, mesmo
quando trabalhava no campo junto ao marido, qualificado como “lavrador”. No
caso analisado, a segurada exercia dupla jornada: atuava como lavradora e
cuidava da casa e dos filhos.
Enquanto o marido podia ter
vínculo formal registrado em carteira, a mulher, apesar de realizar as mesmas
atividades no mesmo contexto rural, permanecia sem registro, invisibilizada
pelo sistema. Por isso, reforça-se a importância da extensão subjetiva da prova
material — amplamente reconhecida pela jurisprudência —, uma vez que,
historicamente, muitas mulheres nem sequer cogitavam a possibilidade de
requerer benefício previdenciário, que era voltado ao chefe da família.
No caso em
exame, constata-se que a segurada preencheu os requisitos legais para
obtenção do benefício de aposentadoria por velhice rural, pois completou 65
anos de idade em 18/01/1985, (nascimento em 18/01/1920) e realizou o início de
prova material válido, com a apresentação de documentos pertinentes.
Como destacou a desembargadora.
ficou comprovado que a idosa segurada, além de ter se dedicado à atividade
rural pelo período exigido, ainda que forma descontínua, também se manteve em
atividade pelo menos até o ano de 1992 (quando se mudou para a cidade), aqui
compreendido o cuidado com a extensa prole e os afazeres domésticos, todos
estes integrantes do conceito de trabalho em regime de economia familiar, em
condições de mútua dependência e colaboração.
A magistrada também ressalta que
a parte autora era titular de pensão por morte rural instituída pelo marido,
além de inexistir no processo qualquer indício do exercício de atividade urbana
pelo casal, o que reforça a conclusão de que o trabalho exclusivamente rural
garantia o sustento daquele grupo familiar.
Processo nº
0074593-34.2010.4.01.9199. Julgamento em 14/05/2025.
José Américo Silva Montagnoli (analista
judiciário)
TRF6
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