STJ Produção antecipada de provas: questões sobre o tempo, a memória e a inversão dos atos no processo penal
No processo penal – iniciado, formalmente, com a decisão de
recebimento da denúncia –, a legislação brasileira prevê uma ordem
específica para a realização dos atos processuais, entre eles a produção de
provas. Essa fase, como regra, é realizada após a citação do réu, e
envolve atos como a oitiva das testemunhas, o interrogatório do réu e a
colheita de outras provas. O objetivo é garantir a efetividade da ação
penal e proteger direitos constitucionais, como o contraditório e a ampla
defesa.
Entretanto, a própria lei brasileira prevê situações em que
é permitida a antecipação da produção probatória, em geral por razões de
urgência ou pela possibilidade de que, com o decurso do tempo, não se tenha
mais como produzir uma prova fundamental. O iminente perecimento de prova
frágil e o tempo entre a prática do crime e o momento da produção da prova no
processo, por exemplo, podem justificar a autorização da medida.
O artigo 156, inciso I, do Código de Processo Penal (CPP) autoriza
que o juiz, de ofício, ordene a produção antecipada de provas consideradas
urgentes e relevantes, mesmo antes de iniciada a ação penal. Já o artigo 366 do CPP estipula que, caso a ação
penal fique suspensa em razão do não comparecimento aos autos de réu
citado por edital, o magistrado também poderá decretar a antecipação da
produção de provas.
Além de inverter a ordem normal do processo penal, a
produção antecipada de provas tem reflexos potenciais no exercício do
contraditório, já que, caso seja autorizada, é possível a mitigação da
participação da defesa no ato. É exatamente a alegação de violação do direito
de defesa que leva muitas partes a recorrer contra a antecipação da produção
probatória, e essas controvérsias, frequentemente, chegam ao STJ.
Em 2010, a Terceira Seção, responsável por matéria de
direito penal, editou a Súmula 455, estabelecendo a exigência de
fundamentação concreta para a produção antecipada de provas com base no artigo
366 do CPP.
Rotina policial justifica tomada antecipada de
depoimentos
No RHC 64.086, a Terceira Seção considerou legal a antecipação da prova testemunhal de policiais, sob o
risco de esquecimento devido à submissão a eventos similares diariamente.
Na origem, um denunciado por tentativa de homicídio, após
ter sido citado por edital, não compareceu em juízo nem constituiu advogado. O
juízo decretou a suspensão do processo e do prazo prescricional, além de
deferir a produção antecipada de provas.
Por sua vez, a Defensoria Pública impetrou habeas
corpus alegando falta de fundamentação concreta que justificasse a
produção antecipada de provas e invocando a Súmula 455 do STJ. O
tribunal local denegou a ordem, sob o fundamento do risco de perecimento da
prova testemunhal.
O ministro Rogerio Schietti Cruz, cujo voto prevaleceu no
julgamento no STJ, ressaltou que, na hipótese de ser desconhecido o paradeiro
do acusado após a citação por edital, o juiz pode determinar a
produção antecipada de provas urgentes com o objetivo de preservar os detalhes
relevantes para a solução do caso.
Schietti destacou que o Estado deve exercitar seu jus
puniendi de forma equilibrada, protegendo não somente o acusado, mas
também a sociedade, "sob pena de desequilibrarem-se os legítimos
interesses e direitos envolvidos na persecução penal".
Segundo ele, a atividade policial é uma circunstância que
agrava as limitações normais da memória humana. "A testemunha corre sério
risco de confundir fatos em decorrência da sobreposição de eventos
semelhantes", avaliou o ministro.
O aproveitamento de prova emprestada e o princípio da
economia processual
A Sexta Turma, no REsp 1.959.984, decidiu pelo aproveitamento de
provas antecipadas, produzidas em relação aos demais denunciados, para aquele
que teve o processo suspenso por não ter sido encontrado.
A ministra Laurita Vaz, relatora do
recurso, destacou que a produção de provas foi realizada no curso regular
da ação penal em relação aos denunciados citados pessoalmente.
Conforme explicou, "a oitiva das testemunhas iria ocorrer,
independentemente do deferimento da medida antecipatória".
Dessa maneira, a relatora apontou que não havia necessidade
de demonstrar requisitos específicos para a antecipação de provas, pois
"ela consistiria tão somente em validar a utilização da prova em relação
ao réu que teve o processo suspenso".
Segundo Laurita Vaz, o aproveitamento da prova ocorreu com
observância do contraditório e da ampla defesa, pois o acusado esteve
representado por defensor público durante a audiência de instrução.
Conforme observou, "localizado o recorrido e retomada a marcha processual,
poderá a defesa, caso entenda necessário, postular a repetição da prova"
que será avaliada pelo juiz.
Presença da defesa afasta risco de prejuízo ao réu
Em 2022, a Quinta Turma negou provimento ao agravo
regimental no HC 751.023, que buscava anular a
antecipação na produção de provas em processo que havia sido suspenso, pois o
réu, citado por edital, não compareceu em juízo nem constituiu advogado.
Na origem, o juízo, como forma de produção antecipada, havia
determinado o aproveitamento de prova devidamente produzida contra o corréu do
paciente, sob o fundamento de evitar a sua perda.
Conforme acórdão do tribunal local, a antecipação
não prejudicaria a renovação da prova em eventual retomada do processo em
relação ao acusado, caso se demonstrasse sua necessidade.
No entanto, a defesa, insatisfeita, sustentou não haver
hipótese autorizadora para a produção antecipada da prova em relação ao
paciente, e pediu a aplicação da Súmula 455.
O relator, ministro Reynaldo Soares da Fonseca, ressaltou a
decisão da Terceira Seção que entendeu ser justificável a antecipação da oitiva
de testemunha quando houver o risco de perecimento da prova. Segundo explicou,
o fato de já se terem passado sete anos desde a data do crime era suficiente
para justificar a colheita antecipada da prova.
O ministro completou que, além disso, a defesa não
demonstrou efetivo prejuízo decorrente da providência adotada em primeira
instância. Segundo explicou, a defesa se limitou a demonstrar uma suposta
insuficiência de fundamentos para pleitear a nulidade da prova.
Em decisão similar, a Quinta Turma também negou provimento ao agravo
regimental no HC 557.840, por entender que a decisão do juízo de
primeiro grau demonstrou fundamentadamente a necessidade da produção antecipada
de prova.
O ministro Ribeiro Dantas, relator do habeas corpus,
destacou que o transcurso de uma década entre o fato delitivo e a produção
probatória indicava risco concreto de perecimento das provas. Além disso, o ato
foi realizado com a presença do Ministério Público e de defesa técnica,
atendendo aos princípios do contraditório e da ampla defesa.
Para o ministro, "a realização da produção antecipada
de provas não traz qualquer prejuízo para a defesa, porquanto o agravante se
encontra representado pela defensoria pública estadual".
Não se pode atribuir à testemunha o encargo de preservar
os fatos na memória
Em outra decisão, num agravo regimental em segredo
de Justiça, a Quinta Turma novamente entendeu que a produção antecipada de
provas não havia trazido qualquer prejuízo para a defesa, já que o ato foi
realizado na presença de defensor nomeado e, caso o acusado comparecesse no
processo futuramente, poderia requerer a produção das provas que entendesse
necessárias para a sua defesa.
Nesse processo, ficou evidenciado o
temor de que, com a demora na colheita de provas, fossem perdidos detalhes
relevantes para a elucidação dos fatos.
"Não há como negar o concreto risco de perecimento da
prova testemunhal, tendo em vista a alta probabilidade de esquecimento dos
fatos distanciados do tempo de sua prática", afirmou o relator, ministro
Jorge Mussi.
O ministro observou que não é justo atribuir a uma
testemunha o encargo de guardar na memória os detalhes dos fatos presenciados,
enquanto o acusado se esquiva da ação penal deflagrada contra ele.
Em 2020, a Sexta Turma cassou uma decisão de primeira
instância que ordenou a oitiva antecipada dos depoimentos de testemunhas sob o
argumento de que, com o passar do tempo, elas poderiam esquecer detalhes dos
fatos.
O ministro Rogerio Schietti Cruz, relator do recurso em
habeas corpus – que tramitou em segredo de Justiça –, afirmou
que a hipótese contida no artigo 366 do CPP só poderia ser aplicada diante da
concreta possiblidade de perecimento da prova, a fim de resguardar a
efetividade da prestação jurisdicional.
No entanto, segundo o relator, a produção antecipada foi
justificada tão somente em razão do decurso do tempo, faltando algum
apontamento específico que, no caso concreto, justificasse a medida.
Para o ministro, "a decisão que determinou a
antecipação não apresentou fundamentação idônea, em clara ofensa ao princípio
do devido processo legal, de modo que não se aproveitam os atos nela
realizados".
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Esta notícia refere-se ao(s) processo(s):RHC 64086REsp 1959984HC 751023HC 557840
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