"Lei das Fake News": vamos pagar caro pela
incapacidade de pensar?
Liberdade de expressão há de sobra; faltam capacidade,
critérios de raciocínio e boa-fé.
Por Matheus Galvão*
Uma criança pergunta a um adulto como apagar uma fogueira e
ele diz: "joga algum líquido". A criança volta com um galão de
gasolina e o resto da história (feliz ou triste) eu deixo ao seu critério.
Isso ilustra bem o nível do debate atual, no qual as
informações se limitam a raciocínios superficiais e sofismáticos.
Desconsideram, deliberadamente, fatores essenciais e complementares com o
intuito puro de persuadir (erística).
O resultado é uma multidão de repetidores com ilusão de
conhecimento e a sensação de serem especiais por saberem a verdade. E nada
melhor do que pertencer a um grupo especial.
Nesse contexto, existem dois tipos de pessoas: os que buscam
entender e explicar pela exposição dos fatos e os que buscam inventar e
convencer pela narrativa omissiva.
Defender-se dos enganadores, entretanto, exige rigor e
critério no pensar. Afinal, a verdade nunca vem de mão beijada, dá trabalho -
tanto pra quem a cria, quanto para quem a consome.
Na história da abertura, alguém poderia ter acrescentado
algumas informações que levariam a criança a entender que nem todo líquido
apaga, mas, ao contrário, pode aumentar a combustão e, consequentemente, a
chama. A inocência e a ignorância podem ser fatais.
Cobra-se cada vez mais liberdade de expressão, como se isso
fosse simplesmente a liberdade de expor e divulgar qualquer informação,
desconsiderando que a maior parte das pessoas sequer consegue avaliar os
critérios para validar um raciocínio.
É nesse espaço que impera a má-fé e a irresponsabilidade.
Mas em tempos de discussão do projeto de lei contra fake
news é imprescindível perguntar: em uma democracia, vale mais punir a
desinformação e a má-fé ou recompensar a capacidade de produzir informação
responsável e rigorosa?
Primeiramente, acredito que a desinformação exige vontade
bilateral. Deve existir uma pessoa disposta a enganar e outra disposta a ser
enganada - ou incapaz de se libertar da enganação.
Esse é o grande xis da questão. Acreditar na liberdade é
defender que as pessoas são autônomas e responsáveis por suas escolhas. Mas a
escolha precisa ser racional, isto é, considerar critérios, informações e dados
suficientes para se tirar uma conclusão válida.
É papel de uma democracia dotar os cidadãos dessa
capacidade. O grande problema é que não se pode obrigar ninguém a aprender a
pensar.
E então, o que fazer?
Voltando ao caso de "apagar o fogo com um
líquido". Líquido é apenas um atributo, uma qualidade específica e
isolada. Quanto mais atributos se reúnem, mais assertividade uma informação terá.
Se um mentiroso conta que viu um assassinato que também foi
testemunhado por outras pessoas sinceras, a narrativa dele não é invalidada
simplesmente pelo fato de ele ter o costume de mentir.
Adjetivos são uma categoria temerosa de palavras. Dentro deles,
cada um põe o ingrediente que bem entender e atribui a qualquer pessoa. Aliás,
não custa lembrar que o uso de certos adjetivos pode até implicar em crime
(injúria, difamação, calúnia).
Fascista, comunista, autoritário... Estas são palavras cada
vez mais usadas para invalidar um pensamento, ação, argumento ou ofender
alguém. Elas desconsideram qualquer análise objetiva.
Não vou me aprofundar numa análise do projeto de Lei das
Fake News, mas os pontos que considero mais críticos são as suas definições vagas
e a sua obsessão por dados, o que poderia minar o direito à privacidade.
Não se deve, a pretexto de combater a desinformação, redigir
um texto de lei sem rigor e critério, permitindo interpretações flexíveis - o
que não significa que os sites e provedores de aplicativo não possam eles
mesmos criar suas regras e determinar boas práticas a serem recompensadas e
reforçadas.
A julgar pelo clima político atual, com uma lei desse tipo,
cada um terá sua própria visão de enganoso ou falso e o embate não se encerraria,
pelo contrário, aumentaria a combustão (nesse caso, a polarização), reforçando
as narrativas de perseguição - de um lado ou de outro.
O problema das Fake News é real e extremamente perigoso. Faz
parte de um projeto político que valoriza a narrativa e a dúvida e não a
objetividade e a ciência.
Como resolver este problema de forma adequada e razoável sem
incorrer em riscos de opiniões válidas se tornarem “mentirosas”?
Esse é o ponto. Estamos indo rápido demais na tentativa de
combater robôs e gente emocional e irracional. E, como se diz, “não dá pra se
jogar xadrez com pombos”, o que torna o debate muito difícil, senão impossível.
Algumas das boas práticas defendidas se salvam, como ícones
para indicar os conteúdos que são comprovadamente falsos ou replicados
múltiplas vezes por contas suspeitas, e restringir o uso de contas não
identificadas.
De qualquer forma, um processo legislativo levado a toque de
caixa pode nos fazer pagar caro pela renúncia de muitos ao exercício - e
liberdade - de pensar com autonomia. Não só isso, pensar com rigor (para se
defender das narrativas capciosas) e com honestidade (para não construir
discurso enganoso e de má-fé).
Mas quem realmente quer isso? E, pra não perder a viagem,
quando teremos um sistema de ensino que dê oportunidade igual para que todos
aprendam os critérios de pensamento rigoroso?
Por enquanto, fiquemos com os pavios curtos de alta
combustão.
*Matheus Galvão, Advogado
Gerente de Comunidade em Jusbrasil
FONTE: JUS BRASIL
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